Confiaste sempre em mim. Não verbalizavas afeto, amor ou carinho, mas as atitudes acolhiam-me. Eu entendia as palavras não ditas, os abraços não dados, os beijos que nunca tiveste e não sabias dar. Eu sentia a tristeza que disfarçavas com luta diária, com o vislumbre de um reconhecimento que nunca veio.
Ensinaste-me tantas coisas sem saberes, só porque exististe. Não, não eras perfeito e até isso me ensinaste, que a perfeição não existe. Ensinaste-me que desistir não é uma hipótese, que a vida não é sempre maravilhosa e que não teria sempre quem me protegesse. Ás vezes de forma ríspida demais para mim, uma hipersensitiva. Lançavas-me sozinha para o meio da arena e dizias-me que isso era a vida, tudo dependia de nós. Da nossa atitude, da nossa coragem, da nossa força de vontade. Gostava eu de ter a tua força de vontade, por vezes excessiva, pois não paravas mesmo que o corpo cedesse. E cedeu tantas vezes e de forma tão mas tão grave e tu nunca, mas nunca desististe.
Ouvi-te pedir desculpa pela primeira vez, já estavas na última doença, a mais desafiante. Nessa altura, percebi que surgia em ti o menino assustado que sempre foste e que nunca pudeste demonstrar. Mesmo assim, negaste a doença até ao fim. No fundo, tu sabias, e arranjaste todas as estratégias possíveis para contornar a enfermidade . Eras sobejamente inteligente, mas a parte emocional, sempre despedaçada, porém encoberta, acabou por levar a melhor.
Vi-te tantas vezes beber só um café, para alimentar uma pessoa necessitada. Tinhas pouco, mas o outro, se era mais frágil, era sempre mais importante. Levei-te para o hospital com costelas partidas, porque defendeste um sem abrigo com metade da tua idade. Dizias o que pensavas, sem contemplações. Eras imensamente culto e exigias que o fossemos também. Jamais cheguei aos teus calcanhares. O que não sabias, aprendias com facilidade. Todos gostavam de ti, porque para ti estava sempre tudo bem. Mesmo quando não estava. Mesmo quando estavas a dias de partir, a tua resposta era que estava tudo bem.
Tiveste a coragem de, toda a vida, SER e não parecer. Quando o mundo te dava valentes tareias por isso, persistias. Esse foi um dos teus grandes ensinamentos.
Naquela noite, em que ficámos só os dois, onde apenas se ouvia a tua respiração e sentia o quente da tua mão, que me sugava energia para se manter viva, disse-te tudo, pai. Já não falavas, mas sentias, eu sei que me sentiste. Disse-te para ires em paz, que eu tomaria conta de tudo. Só acalmaste quando te fiz a promessa, a promessa que não sei se vou conseguir cumprir, mas para a qual luto diariamente. Não, não me esqueci ainda.
Esperaste até estarmos as três e ouvimos todas o teu último suspiro, exausto de tanta luta. Foste envolto em amor. Contigo levaste um pedaço de nós e uma alma que não te conseguiu sobreviver.
Pior que a tua morte, foi ver o teu declínio. O sofrimento de não estar presente a cada minuto que precisavas. Já estou em paz, já me deste um sinal, mas não há dia nenhum em que não vivas através de mim, apesar da tua lancinante ausência.